O racismo pretende construir muros e prisões. Estrutural ou não, deve ser combatido. O objectivo é erradicá-lo, extinguir o racista, não através da violência física, mas condenando-o à inexistência, através da educação, da cultura e das artes. Das artes, insisto. Tudo isto será utopia, mas é pela utopia que devemos ir.
O anti-racismo deve servir para derrubar muros, para explicar ao mundo que não estamos separados pela cor da pele. Como tantas lutas legítimas, também o anti-racismo está sujeito a exageros e perversões. Qual é a diferença? O racismo deve ser destruído, o anti-racismo precisa de ser melhorado. O problema de quem faz força em sentido contrário reside, por vezes, num excesso nascido da revolta ou da necessidade de compensar a força do inimigo.
Recentemente, na Holanda, surgiu uma polémica a propósito da tradução do poema que Amanda Gorman escreveu e declamou na tomada de posse de Joe Biden. Quando se soube que Marieke Lucas Rijneveld, a tradutora escolhida, era uma mulher branca, houve uma revolta tal que esta, apesar de avalizada pela própria autora, pediu desculpa e retirou-se. Pelos vistos, aquele poema só pode ser traduzido por alguém com a mesma cor de pele da autora.
O anti-racismo transforma-se, assim, num racismo de sinal contrário, mesmo que as intenções sejam, originalmente, as melhores.
As artes, entre outras actividades e entre outras funções, servem para que o individual se torne colectivo, para que o estranho se torne familiar e o familiar seja percebido como absurdo, enfim, poderíamos ficar aqui o resto da vida e mais seis meses. O jazz nasce negro e torna-se universal e a literatura é gerada na Europa para ser um instrumento de análise e de prazer ao serviço de qualquer ser humano.
Um dos melhores filmes que vi sobre a condição da mulher (negra, ainda para mais) é A Cor Púrpura. Lembrais-vos do nome do realizador? Steven Spielberg. E também poderíamos estar aqui mais outra vida e outros seis meses.
o Inimigo Público, por nunca falar a sério, fez uma das críticas mais sérias a este assunto: Escritora holandesa desiste de traduzir ‘Os Lusíadas’ porque não está morta como o Camões. A minha amiga Ana Mendes da Silva lembrou que, ainda por cima, a mesma escritora tem dois olhos, o que constitui uma visível desvantagem.
Finalmente, pergunto-me quem poderá traduzir (ou até ler, que uma pessoa até ganha medos) o poema “Lágrima de Preta”, de António Gedeão. É que, com base neste anti-racismo irracional (e, até, a-sentimental), este poema está cheio de erros: é escrito por um branco, referindo-se ao corpo de uma preta e, como se isso não bastasse, ainda quebra as fronteiras entre a poesia e a Química, duas áreas que deveriam ser obrigadas a viver num apartheid conceptual.
E juízo?