Não vou entrar no debate Herói VS Vilão. Na Guerra Colonial, o vilão era Salazar e o seu indissociável regime. Não havia outro. Todos os outros foram vítimas, umas mais que outras, e cada um fez as suas escolhas, mais ou menos condicionadas. Marcelino da Mata escolheu servir o regime fascista. Se o serviu por convicção, interesse ou medo, é dúvida que dificilmente será esclarecida. Podemos apenas especular. Mas isso também não interessa para nada! Porque a discussão que se gerou não foi sobre Marcelino da Mata, mas sobre o que certas forças quiseram que Marcelino da Mata representasse na hora da sua morte.
Digam o que disserem os saudosistas, Marcelino da Mata foi instrumentalizado pelo Estado Novo. Foi, literalmente, sem aspas, um instrumento de propaganda. Não está em causa se voluntariamente ou não. Poderá não o ter sido numa fase inicial, mas, seguramente, houve um momento em que percebeu qual o seu propósito e utilidade para o regime fascista: um negro leal ao regime opressor, que Salazar usou para dizer aos negros colonizados que aquela guerra não era entre a metrópole autoritária e as colónias subjugadas, mas entre um Portugal de todas as etnias e raças, que nunca existiu, e um bando de insurgentes criminosos, que calharam de ser todos negros e descendentes dos povos colonizados.
Marcelino da Mata seria o amigo negro que Salazar usaria para responder a Miguel Sousa Tavares, em entrevista para as presidenciais. Com a diferença que Salazar não permitia eleições para lá da ocasional encenação. Marcelino da Mata salvou portugueses, é certo, mas também torturou e mutilou prisioneiros, entre outros crimes de guerra. E fê-lo por opção, não por necessidade ou imperativo patriótico. E sua fama precedia-o. Não será fruto do acaso, a relação de proximidade que cultivou com o PNR até ao final dos seus dias. Como não foi fruto do acaso, ter sido transformado do militar mais medalhado do regime fascista. Sublinhe-se do regime fascista.
Muitos dos que agora se indignam com o alegado cancelamento do militar, que teve altas figuras de Estado e da vida pública no seu funeral, a começar por Marcelo Rebelo de Sousa, são os mesmos que recorrem ao racismo mais primário para tentar cancelar Mamadou Ba. Os que todos os dias afirmam ter a sua liberdade de expressão em causa, usando para tal a sua liberdade de expressão, igualmente usada para exigir que a mesma seja retirada a Mamadou Ba. Que respondem a acusações de racismo sendo racistas. Que assinaram um abaixo-assinado racista, para deportar alguém que não reúne condições legais para ser deportado, com o objectivo único de normalizar o discurso e a prática. Foi também para isto que, tal como o Estado Novo, os herdeiros do fascismo usaram Marcelino da Mata como o instrumento de propaganda que sempre viram nele. Marcelino da Mata era o “mas” quando o regime era acusado de racismo. Porque, à primeira oportunidade, à primeira virgem ofendida que se sentisse muito ofendidinha com Marcelino da Mata, em particular entre a extrema-direita, que é que recorre a essa narrativa. Marcelino da Mata seria convidado a “ir para a sua terra”. Tão certo como ter sido um instrumento de propaganda do regime fascista do Estado Novo.