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2020: o ano de todas as pandemias

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2020 foi um ano difícil, que pode ser resumido em poucas palavras: vírus, epidemia, pandemia, medo, confinamento, distanciamento social, máscara, álcool-gel, negacionismo, contágio, zaragatoa, teste, ventilador, profissionais de saúde, SNS, layoff, crise económica, vacina e morte. Talvez pudessem ser acrescentadas mais algumas, que nem me ocorrem nem me apetece procurar, porque não pretendo fazer disto uma obra científica, mas este foi o léxico dominante, durante os nove últimos meses. E, não nos iludamos, continuará a sê-lo.

Muito foi dito e escrito sobre a pandemia. Da “gripezinha” à falsa sensação de segurança, passando pelas habituais conspirações, amplificadas pela ignorância militante, de repente éramos 7,8 mil milhões de especialistas em saúde pública, virologia e gestão de crises. Por cá fomos bestiais, depois bestas, e, quer-me agora parecer, terminamos o ano como culpados pelo agravar dos números. E não, não saíamos mais unidos, mais conscientes ou mais humanos de tudo isto. Saímos como entramos, com as nossas virtudes e defeitos, adaptados ao novo normal que, esperamos, já seja uma recordação distante daqui por um ano.

Enfrentaremos agora uma crise económica, porque os paliativos estão a chegar ao fim e a bazuca, sendo bem-vinda, não será solução para os nossos problemas, como a dívida externa estratosférica ou o despesismo e a corrupção sistémica que para ela contribuem sempre nos recordam. Portugal precisa de uma mudança estrutural radical, precisa que partidos como o PS e o PSD se reformem profundamente, e precisa, acima de tudo, de dar ao português comum motivos para continuar a acreditar na democracia, antes que ele se converta ao novo fascismo ou a qualquer outra seita que por aí anda, a minar aquilo que construímos com sangue, suor e lágrimas.

Por falar em pandemias, a mais grave de todas continua em grande forma e a avançar, triunfante. 2020 foi um ano marcado pelos piores fogos florestais de sempre na Austrália e Califórnia, o desmoronar dos glaciares continua, o permafrost derrete a uma velocidade nunca antes vista, libertando quantidades preocupantes de carbono, as monções foram violentíssimas, com efeitos brutais como aconteceu no Bangladesh, onde cerca de 25% do país ficou submerso, e os oceanos estão cada vez mais contaminados por plásticos que ameaçam o equilíbrio dos ecossistemas marítimos. Perante tudo isto, a palermosfera prefere praticar o tiro à Greta, porque reflectir sobre a merda que estamos a fazer não lhe assiste. 2020 foi mais um ano perdido na luta pela sobrevivência do planeta.

2020 fica também marcado por outros temas e questões, que conseguiram a sua quota de protagonismo pelos mais variados motivos. A morte de George Floyd, por exemplo, fez eclodir um movimento à escala global, colocando a nu o problema da violência policial nos EUA e do racismo sistémico, mais ou menos enraizado no mundo democrático, onde não pode nem deve ser tolerado. Por cá, o actor Bruno Candé foi assassinado à queima-roupa, por um saudosista do Estado Novo, e a extrema-direita respondeu, saindo à rua para negar a existência do racismo na nossa sociedade. Mais do que discutir a existência ou não de racismo, urge clarificar a definição de racismo sistémico, invisível aos olhos de muita gente por um motivo simples: é sistémico. Está enraizado. E é encarado com tanta naturalidade que chega a parecer que não o é, apesar de o ser. Temos um longo caminho a fazer.

Também por isso, mas principalmente pela gestão bizarra, desumana e infantil da pandemia, vimos Trump cair sem estrondo. Sim, sem estrondo. Não fosse a vitória de Biden, com expressivos 81.3 milhões de votos, que fizeram dele o presidente mais votado de sempre, os 74.2 milhões de estado-unidenses que votaram Trump teriam, numa situação normal, sido suficientes para o eleger, como o foram para derrubar a votação recorde de Obama, que venceu, em 2008, com 69,5 milhões. Trump caiu, a ascensão da extrema-direita sofreu um duro golpe, mas a América pós-Trump continua dividida, tribalizada, tensa e em ebulição. E Trump, que continuará à espreita, já tem os olhos postos em 2024.

Aqui pelo rectângulo, sem grandes surpresas, “cá vamos andando”. Fomos de bestiais a bestas, pandemicamente falando, e percebemos, aqueles que ainda não o sabiam, ou cujas ideologias garantiam que este seria um país melhor se o sector da saúde fosse integralmente privatizado, que vivemos num país onde o SNS é uma das nossas maiores conquistas. Talvez fosse importante explicar aos novos saudosistas do salazarismo, que, no tempo do Estado Novo, a saúde era um privilégio da elite que vivia em conluio corrupto com o regime. E que, todos os anos, morriam centenas ou milhares de crianças por falta de cuidados básicos de saúde. O que me leva a outra conquista de Abril: a Educação. Nunca foi tão importante o seu papel, principalmente nestes tempos de notícias falsas, desinformação, imbecis pela verdade e vendedores de banha de autocrata. Mais Saúde e mais Educação, que ninguém tenha dúvidas, são o caminho para uma sociedade mais justa, mais igual e equitativa, mais feliz.

Na política, tema inevitável por estas bandas, assistimos ao expectável falecimento da Geringonça e ao nascimento da Fachingonça, nos Açores. Ou, por outras palavras, ao suicídio político de Rui Rio. Em 2021, é também expectável que o PSD de Rio seja derrotado nas Autárquicas, apesar do desgaste do governo, e que Passos Coelho regresse para federar as direitas, concluindo, assim, o processo de acantonamento em curso, o que poderá reverter o divórcio entre PS e BE. Será também interessante perceber que resultado conseguirá o PCP nas Autárquicas, após as polémicas envolvendo o Avante e o recente congresso. E teremos finalmente o verdadeiro Marcelo em Belém, já sem receio de dizer ou fazer algo que possa colocar em causa a reeleição, visto ser o seu segundo e não-renovável último mandato. A direita terá, finalmente, o seu presidente.

Quanto a Costa e ao governo, é expectável que sobreviva a 2021. Ninguém quer Legislativas antecipadas antes das Autárquicas, muito menos em tempo de pandemia e crise económica, mas, num contexto normal e não-eleitoral, o futuro deste governo estaria selado. Não pela gestão da pandemia, que, apesar de tudo, não foi nenhum desastre, tendo em conta o que aconteceu no universo comparável, mas pela sucessão de casos, da não recondução de Joana Marques Vidal ou Vítor Caldeira até ao mais recente escândalo de fraude que envolve o novo procurador europeu, José Guerra, passando pelo cadáver político em que se transformou o ministro Cabrita ou pelo Familygate, entre outros. O tempo de António Costa está a chegar ao fim e o PS encontra-se perante uma encruzilhada, entre seguir igual a Costa ou assumir-se, de uma vez por todas, como um partido de esquerda, liderado por Pedro Nuno Santos e ladeado por uma nova geração, mais próxima do Bloco do que do PSD.

Desapareceram várias personalidades marcantes, como acontece em qualquer outro ano, mas a perda de Eduardo Lourenço, no momento em que a ignorância anda na rua, sem vergonha na cara, a querer substituir-se à ciência, tem um significado particularmente perturbador. Poderia ficar aqui, horas, a falar de todos os que partiram, mas prefiro dedicar estas últimas linhas aos animais que morreram no incêndio brutal do canil em Santo Tirso e no massacre na Torre Bela, para vos dizer que, nesses dias, senti muita vergonha de ser português. Ainda assim, nada disto se compara com a vergonha absoluta causada pela morte de Ihor Homeniuk, o cidadão ucraniano que foi espancado e torturado até à morte, nas catacumbas do SEF no aeroporto Humberto Delgado. Num momento em que as ameaças à democracia nos chegam de todo o lado, havendo mesmo um partido que defende o seu derrube, mais do que triste e deplorável, tudo isto é assustador. Que 2021 seja o ano em que percebemos a importância de lutar, todos os dias, por mais e melhor democracia. E, mais importante ainda, que percebamos que nada, muito menos a democracia ou a liberdade, são dados adquiridos.

Um abraço a todos os amigos e leitores do Aventar, sejam felizes e que nada vos falte. Que 2021 vos sorria, na medida do possível, de preferência com menos pandemias que este 2020 de fraca memória.


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